Publicação do jornal EL PAÍS merece profunda reflexão
Crises globais exigem soluções globais: é hora de criar uma Constituição mundial?
Grupo de filósofos e ativistas propõe uma norma que sirva de “bússola de todos os Governos para o bom governo do mundo"
FABRICE COFFRINI / GETTY IMAGES
Mas faz sentido fechar as fronteiras para lutar
contra o coronavírus? Esse retorno à soberania nacional
não é uma reação melancólica diante de um perigo sem passaporte? Esse gesto não
lembra, no fundo, as filas que vimos surgir nas lojas de
armas nos Estados Unidos? Isso não é matar moscas com tiros
de canhão? Um grupo de juristas e ativistas escolheu um caminho muito diferente
e, apesar do momento crítico e agitado atual, lançou uma ideia colossal: uma
Constituição da Terra como ferramenta de governança global. Frente ao reflexo
nacional, a imaginação cosmopolita quer avançar na globalização do direito.
“Não é uma hipótese utópica”, disse o ex-juiz e filósofo do direito
italiano Luigi Ferrajoli durante a primeira assembleia desse movimento em Roma
em 21 de fevereiro. “Pelo contrário, é a única resposta racional e realista ao
mesmo dilema que Thomas Hobbes [autor de Leviatã e teórico do
Estado moderno] enfrentou há quatro séculos: a insegurança geral da liberdade
selvagem e o pacto de coexistência
pacífica sobre a base da proibição da guerra e a garantia da vida”, afirmou.
O contexto da assembleia era ao mesmo tempo antigo e ferozmente atual: a
Biblioteca Vallicelliana, uma instituição tão velha quanto Hobbes, e na capital
da Itália, que detectava à época o primeiro contágio local pelo vírus. Mas a
ideia vem sendo forjada há anos, promovida pelo jornalista italiano Raniero La
Valle, e foi anunciada formalmente em Roma em dezembro de 2019, quando o
coronavírus ainda era uma realidade sem nome e reconhecimento
oficial na China. “Há anos que se vem trabalhando em
uma mesma direção, ainda que a partir de diferentes perspectivas, como a
necessidade de um novo contrato social”, diz por telefone de Buenos Aires,
Argentina, Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz e outros dos promotores.
Agora a necessidade é viral e vital.
O pós-guerra mundial
O final da Segunda Guerra Mundial é o ponto de referência, tanto para os que defendem dar esse passo
como para seus detratores. “Se ao final da guerra nos falassem que hoje
existiria uma Corte Penal Internacional, e que na Europa e América Latina
a convenção dos direitos humanos iria se impor aos Estados, não teríamos acreditado”, afirma Luis Arroyo
Zapatero, professor de Direito Penal da Universidade de Castilla-La Mancha, a
favor da ideia do constitucionalismo planetário. De Roma saíram, em 1957, os
tratados fundacionais da atual União Europeia, “que à época era uma ideia
extravagante dos franceses e, quase exclusivamente, de Jean Monnet”, acrescenta
Arroyo.
“Os que idealizaram a Comunidade [Econômica Europeia, germe da EU]
sempre evitaram a ingenuidade do momento utópico”, lembra De Miguel, autor
de Kelsen versus Schmitt. Política y derecho en la crisis del
constitucionalismo (Kelsen versus Schmitt. Política e direito na
crise do constitucionalismo). “Por isso pensaram no funcionalismo: começar com
objetivos pequenos, consolidá-los, trabalhando pela integração e que a partir
desses elementos a comunidade política seja criada”, afirma.
A União Europeia teve um momento constitucional.
“Em 2004 se pensou que se mobilizássemos uma Constituição,
mobilizaríamos uma comunidade política. Mas não funciona assim, talvez as
pessoas acreditem que as Constituições sejam feitas pelos povos, por
parlamentares em uma assembleia constituinte etc”. Em 2005, o projeto de
Constituição europeia encalhou nos referendos da França e Holanda, que votaram
contra. Mas os direitos fundamentais são garantidos na prática pelos tratados e
o Tribunal da UE.
“A Constituição europeia fracassou
pela prevalência dos nacionalismos”, diz Ferrajoli por telefone de
Roma. “Pelo analfabetismo dos soberanistas”, diz se referindo à versão
atualizada das teorias de Carl Schimdt – sem povo não há Constituição – que
para ele representam Salvini na Itália e Orbán na Hungria, mas
também os “ricos” do norte. “Não há nenhum povo unitário, a vontade de povo é,
por fim, a vontade do chefe”, acrescenta Ferrajoli, que aponta o passado
nazista de Schmidt.
Para Ferrajoli, uma Constituição não é a vontade da maioria, e sim a
garantia de todos. A Constituição mundial obrigaria a proteger a igualdade, o
direito à não discriminação e à saúde. Direitos que pertencem à “esfera do que
não se pode decidir” e que não podem estar à mercê das maiorias. Ninguém, diz,
está falando de um Estado mundial: “Cada país deverá poder continuar decidindo
sobre o que se pode decidir”, ou seja, as políticas que não violentam os
direitos fundamentais.
Com 2,5 bilhões de pessoas confinadas no mundo, a crise sanitária prova, em sua opinião, que somente as “soluções globais” garantem
nossa sobrevivência. “É absurdo que acumulemos armamentos para a guerra e
que não acumulemos máscaras para uma
pandemia”, diz Ferrajoli. A comunidade
internacional está madura a uma proposta como a sua? “Não sou tão ingênuo: é um
processo que levará muitos anos, mas é preciso lançar o debate público”.
______________________________________________ Fonte original EL PAÍS